segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Pela alteração das condições de existência da população de ascendência africana no estado brasileiro.



PELA  ALTERAÇÃO DAS CONDIÇÔES DE EXISTÊNCIA DA POPULAÇÃO DE ASCENDÊNCIA  AFRICANA  NO ESTADO BRASILEIRO.
Sandrali de Campos Bueno
      A sociedade brasileira se estruturou com base no colonialismo sob a égide da desapropriação dos pressupostos civilizatórios da matriz africana enquanto berço da humanidade e no ideário de supremacia cultural branca e patriarcal. Esses elementos dão sustentação à discriminação e à intolerância, promovendo desigualdades e violências estruturais e estruturantes, como vetores determinantes de um sistema excludente, impondo, sobretudo à população de ascendência africana, o lugar de invisibilidade social, econômica, política, histórica e cultural, além da desconstituição subjetiva de que o racismo perpassa por todas as relações, sejam estas interpessoais, sociais, religiosas, políticas e institucionais. Explicitando este lugar de invisibilidade no cenário brasileiro: a invisibilidade não é um atributo das pessoas de ascendência africana; elas ocupam o lugar da invisibilidade.  O racismo se perpetua porque ele é uma opção política para legitimar a não existência de políticas efetivas que alterem a condição de existência das pessoas de ascendência africana e é a mesma opção que coloca os direitos como concessão ou como ações de governo, mas não como política de estado. São as condições que mantém a população de ascendência africana em posições sociais ‘menos favorecidas’ e com ‘menos direitos’ é que são invisibilizadas. É a situação da violência estrutural causada pelo racismo, pelo preconceito que a sociedade invisibiliza a partir da generalização e do senso comum da opinião pública construído por mecanismos instituídos e institucionais incrustados na formação colonialista da sociedade brasileira.  A pessoa de ascendência africana, em si, é e pode ser vista, mas o lugar que lhe “reservam” que não pode ser questionado, nem o modo como “lhe olham”, nem as condições de existência, em que vivem, podem ser afirmadas e alteradas. É dessa invisibilidade que se quer falar e trazer à tona; dessa invisibilidade que o racismo institui e se estrutura: o que o racismo torna invisível são as ‘cadeias’, as finas amarras, o véu que esconde a perpetuação da pobreza, da baixa escolaridade, da sujeição à violência policial sob os mitos e arquétipos forjados na não-afirmação do Outro como Pessoa. Pois se assim não fosse, a universalidade dos direitos humanos não seria, como tem sido para a população de ascendência africana, um lugar diluído onde as políticas adquirem um ‘status’ de concessão, abstraída da existência do Ser e vinculada a não- afirmação desse Ser. 
      Neste sentido, cabe parafrasear a própria fala, enquanto alguém que ocupa o lugar de representatividade da Tradição de Matriz Africana, no Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social do Rio Grande do Sul, ampliando, para direitos humanos, o argumento que subsidiou o posicionamento, acerca das políticas de saúde, no que se refere à população de ascendência africana, ou seja: “a concepção de universo na cosmovisão africana agrega valores civilizatórios que se expressam na sociedade brasileira. Porem nem sempre são incluídos como saberes no processo de construção de direitos humanos. Entretanto quanto maior e mais apurado for o olhar dos gestores, mais aperfeiçoado será o recorte que farão nas políticas públicas. E é neste recorte que encontrarão o distanciamento na promoção e desenvolvimento das políticas para população negra, mas também será lá que encontrarão os instrumentos potencializadores para consolidação de políticas de promoção dos Direitos Humanos, no que diz respeito ao aperfeiçoamento da gestão solidária, participativa e transversal”, pois direito não pode ser concessão, direito é conquista.
      O “reconhecimento de que o racismo, as desigualdades étnico-raciais e o racismo institucional são determinantes sociais” em que se inscrevem as condições de existência da maioria da população brasileira (lê-se população de ascendência africana, vide os dados do IBGE e FGV), significa um avanço conquistado através da luta dos movimentos sociais, conforme expõe a socióloga Reginete Bispo (2012),
"considerando, um largo histórico de luta pela cidadania e igualdade racial, desde a luta pela abolição da escravidão e, nas últimas décadas, destacando-se a ‘Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo pela Cidadania e a Vida’, realizada em 1995, como um novo marco frente a questão racial. A permanente organização e mobilização dos Povos de Terreiro, das Comunidades Remanescentes de Quilombos, das Organizações do Movimento Negro reivindicam uma Política de enfretamento às desigualdades raciais que levaram o governo brasileiro estabelecer mecanismos de Promoção da Igualdade Racial, destacando-se entre outros, a criação da SEPPIR – Secretaria Especial de Política de Promoção da Igualdade Racial, em 21 de março de 2003, com atribuição de “Promover a Igualdade e a proteção dos direitos de indivíduos e grupos raciais e étnicos afetados por discriminação e demais formas de intolerância, com ênfase na população negra”.
      Mesmo quando se faz referência ao marco legal como: a Constituição Federal: art. 3º, IV; art. 4º, VIII; art. 5º, XLII; a Lei 12.288, de 20 de julho de 2010 que institui o Estatuto da Igualdade Racial; o Decreto nº. 6.872, de 04 de junho de 2009 – Institui o Plano Nacional de Promoção da Igualdade Racial – PLANAPIR; a Lei Estadual nº 11.731/02, que trata da regularização dos territórios quilombolas no Rio Grande do Sul; o Estatuto da Igualdade Racial do Estado do Rio Grande do Sul; o Decreto nº. 50.112, de 27 de fevereiro de 2013 que institui o Comitê Estadual do Povo de Terreiro com a finalidade de propor, sugerir, apontar e elaborar políticas públicas voltadas ao Povo de Terreiro e às Populações de Ascendência Africana, considerando os pressupostos de xenofilia de cosmovisão africana, ainda é preciso que se reconheça que o Estado Brasileiro tem uma dívida impagável para com o Povo Negro e seus valores culturais, principalmente no que refere à concepção do Sagrado e suas formas de se relacionar com esse Sagrado. Segundo afirma o teólogo Jayro Pereira de Jesus (2013),      
“O racismo cultural que tem se manifestado mediante o que se convencionou chamar de intolerância religiosa que grassa no Brasil, tem redobrado suas violências com mais contundências em cidades cuja população vem se autodeclarando de Tradição de Matriz Africana e Afro-Umbandista, conforme as pesquisas oficiais (IBGE e FGV), como é o caso de Porto Alegre, sua região metropolitana e o Estado do Rio Grande do Sul como um todo. De acordo com os dados dos citados institutos de pesquisas e estatísticas os/as gaúchos/as sãos os/as adepto/as que mais se autodeclaram de Tradição de Matriz Africana e Afro-Umbandista do país reiteradamente. No caso da intolerância religiosa que acomete adeptos e locais dos cultos afros, seus alvos tem instado o Estado brasileiro a assumir como sua a responsabilidade pela resolução desse conflito unilateral que se arrasta histórica e secularmente no país ininterruptamente, mudando somente as características dos perpetradores que invariavelmente se inscreve no campo religioso que tem como sustentação da sua visão teológica de mundo o maniqueísmo e sob o qual projeta todo um embate em que forças opostas se confrontam”.
      Voltando à questão do lugar da invisibilidade, é importante ressaltar que a religiosidade de matriz africana é visível quando vista como folclore – como cultura popular é permitida – mas quando se anuncia como visão de mundo, como concepção que permeia a existência, aí o racismo se expressa na sua forma mais violenta e cruel estabelecendo o ‘fascismo territorial’, na expressão de Boaventura Sousa Santos. E aqui cabe uma pausa conceitual para perguntas que se expressam na luta e na sabedoria da tradição de matriz africana, como nas falas de Iyá Vera Soares e de Baba Diba de Yemonjá: Em que mês deste ano não tivemos um ataque a casas de religião da tradição de matriz africana? Quais as razões para invisibilizar a motivação do assassinato de Vilma Santos de Oliveira, a Iyá Mukumby, 63 anos, iyalorixá, líder do movimento negro, sua neta e sua mãe, assassinadas violentamente na noite do dia 03de agosto, deste ano, no Jardim Champagna, em Londrina, no Paraná?  
      E daí não é difícil entender o que está implícito no texto que introduz os documentos da III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata promovida pela ONU em 2001, na cidade de Durbam, / África do Sul, ao referir que: “embora as negociações destes dois documentos tenham sido muito intensas e por vezes difíceis, a sua adoção, por consenso, representou um marco histórico significativo na luta contra o racismo e a discriminação. Asquestões mais controversas se prenderam com a abordagem de fenômenos históricos como a escravatura, o tráfico de escravos e o colonialismo (grifo é nosso).
      E aqui é um bom lugar para reafirmar que as pessoas de ascendência africana não são descendentes de escravos, citando Makota Valdina, “somos descendentes de seres humanos que foram escravizados”. 
      O Estado Brasileiro, mesmo sendo signatário de tratados e acordos internacionais no combate ao racismo, à xenofobia e à intolerância, não tem dado conta do que estes mecanismos irradiam e da capacidade do povo brasileiro de se reconstruir a partir da pluralidade dos povos que constituíram nosso país. Neste cenário, destacamos o entendimento da ONU de que o Ano de 2011, como o Ano Internacional das Pessoas com Ascendência Africana não foi o suficiente para promover avanços contundentes e, instituiu o período de 2013 a 2023 como a Década para as Pessoas com Ascendência Africana, tendo como proposta de que ações sejam efetivamente engendradas para que os/as afrodescendentes adquiram a cidadania plena. O imperativo é o estabelecimento de organismos estruturais e de formulação de políticas estruturantes nos âmbitos dos governos nacionais, estaduais e municipais voltados para as relações étnico-raciais. 
      Isto exposto e tendo como indicador teórico conceitual os princípios civilizatórios da cosmovisão africana, destacamos a “Década para as Pessoas com Ascendência Africana como uma perspectiva de restabelecimento do patrimônio axiológico negro-africano como forma de saldar a dívida secular e histórica, devolvendo os valores existenciais que se inscrevem na visão de mundo do berço da humanidade, ou seja, anterior ao processo colonialista e incidindo nos processos de colonialidade, vigentes nas políticas que se pretendem universais, mas que ainda mantém inalteradas as condições de existência da população negra”. (Jayro Pereira de Jesus, 2013).
      Neste contexto, é preciso reafirmar que Direitos Humanos se subscrevem como princípio civilizatório que transcende as subjetividades, enquanto “ser consigo mesmo” para “ser com os outros”. Essa dimensão humana, em que a pessoa está conectada a tudo e a todos, é que confere o caráter de universalidade do acesso pleno ao patrimônio imaterial, histórico, cultural, social e econômico da humanidade, para todas e todos, sem qualquer distinção.
      E que “sirvam nossas façanhas de modelo”, mas que tenhamos coragem para transformar o ideário que cunhou o verso racista.
      Porto Alegre, 23 de agosto de 2013.


Documento para subsidiar a fala dos movimentos sociais no que se refere ao segmento que representa a Tradição de Matriz Africana, no Comitê de Mobilização do lançamento, no Estado do Rio Grande do Sul, no dia 02 de setembro de 2013, do Fórum Mundial dos Direitos Humanos a ser realizado, em Brasília, no período de 10 a 13 de dezembro de 2013.

Iyalorixá, psicóloga, especialista em Criminologia. Membro da Rede Nacional de Religiões Afro-brasileiras e Saúde/RS. Conselheira, representante da Tradição de Matriz Africana, no Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social do Rio Grande do Sul, de dez 2011 a ago 2013. Coordenadora do Comitê Estadual do Povo de Terreiro, instituído pelo Decreto nº 50.112, de 27 de fevereiro de 2013.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Comitê Estadual do Povo de Terreiro do Rio Grande do Sul.


COMITÊ ESTADUAL DO POVO DE TERREIRO: UMA CONQUISTA DOS TERREIROS DO RIO GRANDE DO SUL E UMA VITÓRIA PARA AS RELIGIÕES AFRO DE TODO O PAÍS.


Rio Grande do Sul constitui Comitê Estadual do Povo de Terreiro
baba dyba
O Governo do Estado do Rio Grande do Sul instituirá o Comitê Estadual do Povo de Terreiro, em solenidade no Palácio Piratini, na sexta–feira (24), às 15h30. É o primeiro estado brasileiro a criar este colegiado, que tem a função de propôr um programa de implementação de políticas públicas para as populações de ascendência africana. A medida resulta de reivindicação do movimento social e recomendação do Conselhão. O Comitê será composto por seis representantes do governo e 24 membros da comunidade com atuação voluntária. Constituído por decreto, o grupo dará encaminhamento à formação de um Conselho que formulará políticas públicas para o segmento.
A recomendação para constituir o Comitê foi formulada por integrantes do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social a partir dos debates com as entidades do segmento na Câmara Temática Proteção Social. O pedido foi entregue ao governador Tarso Genro no dia 23 de novembro durante o Diálogos Cdes–RS sobre Igualdade Racial, no Palácio Piratini, com a presença da ministra da Igualdade Racial, Luiza Bairros. Na ocasião, o Governo do Estado apresentou as ações voltadas à efetivação dos direitos da população negra de forma transversal nos diferentes órgãos do Executivo, o que impressionou a ministra pela diversidade de iniciativas.
Diálogo com o segmento
A conselheira do CDES–RS, Sandrali Bueno, destaca que o Conselhão teve importante papel nesta conquista. “Este avanço é resultado do diálogo que o estado estabelece com o movimento social. Estamos fazendo uma reparação civilizatória de políticas para a população negra como um todo. Não somos apenas um lugar onde se cultuam os orixás, mas um lugar de expressar as ações que atendam as especificidades deste povo”, pondera Sandrali.
“O Comitê tem a finalidade de propor, sugerir, apontar e elaborar políticas públicas voltadas ao Povo de Terreiro e às populações de ascendência africana”, diz o Artigo 1º do Decreto 50.112, publicado em 27 de fevereiro de 2013. Entre as tarefas principais do Comitê está a de estabelecer as bases para criar o Conselho do Povo de Terreiro. Para consolidar o Conselho, o grupo está encarregado de organizar e convocar a Conferência Estadual do segmento. O decreto também prevê que o Comitê tem prazos para apresentar ao governador um relatório com diagnóstico, propostas específicas e cronograma de atividades e apontar ações efetivas para a promoção da igualdade racial.
Política para o século XXI
Para a integrante da Comissão Executiva do Comitê Iyà Vera Soares, a construção deste grupo impulsor que vai homologar um Conselho traz o princípio de uma reparação para este povo tradicional africano. “O século XXI nos impulsiona a trazer a história desse povo que ficou anulada por 500 anos, deixando um processo desigual de falta de oportunidades. Estamos construindo esta ação política para que a juventude de hoje tenha sua identidade definida, não tenha vergonha nem medo de dizer ‘sou descendente de africano, tenho uma origem, uma história e a minha maneira de exercitar minha fé’, que um dia foi chamada de religião de matriz africana”, registra a yalorixá do Centro Memorial de Matriz Africana 13 de Agosto, de Porto Alegre.
Vera Soares explica que os conselhos eram modos de organização da África antes da colonização. Ela entende que nada mais justo reivindicar um conselho de povo de terreiro ou de povos de matriz africana por estar ligado a uma forma cultural de organização ancestral.
Para a Yalorixá, é importante esclarecer que o povo de terreiro é muito mais que a prática de cultos de matriz africana. “Queremos dizer ao mundo, ao Brasil, ao nosso estado, que temos uma visão de mundo africana antes da colonização, que foi reforçada num tempo de sincretismo necessário para que os africanos escravizados sobrevivessem numa fase da história de muitos horrores. A escravidão é considerada como crime de lesa–humanidade. Um povo retirado da sua terra mãe, num processo de banalização de suas identidades, a única coisa que nos manteve e que nos mantém num espaço com nossa maneira de vestir, a comida, a forma de andar, de dançar, o tambor, tantas coisas que hoje são industrializadas e a geração de muita riqueza, que são as coisas que vieram de nossos povos”, conclui a mãe de santo.
Espaço guardião da cultura
O coordenador da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (Renafro), Baba Diba de Yemonjá, estima que o RS tenha cerca de 65 mil casas de terreiro. “Os terreiros são guardiões de toda esta visão de mundo de matriz africana, de todo este processo civilizatório. A partir dos terreiros podemos construir políticas de igualdade racial não só apenas para o povo de terreiro mas para o povo negro. É legitimo porque nós detemos os processos civilizatórios desta tradição”, defende o babalorixá.
Ele observa que há grande necessidade de políticas para esse povo para reparar um processo que a abolição não deu conta. “A Lei Áurea tinha duas linhas e nenhuma ação de inclusão, como habitação, educação, ou qualquer outra”. Baba Diba registra que esta exclusão se mantém por exemplo com a ilegalidade dos terreiros. “A maioria é oriunda de área de invasão, não tem Habite–se e por isso não tem alvará”. Observa ainda que leis ainda precisam entrar na prática com visão afro–centrada como a 10.639, que obriga o ensino de história e cultura afro–brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio. Foi um dos primeiros atos do então presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva.
O governo brasileiro inaugurou na última década uma reviravolta nessa herança ao assumir a dívida histórica do Brasil com respeito à África e ao reafirmar o peso da África e dos afrodescendentes na formação social brasileira. Pediu publicamente perdão aos africanos e fez da África uma prioridade para a inserção internacional do Brasil, mediante uma visão de largo prazo dos interesses nacionais, como expresso pelo ex–presidente Lula em reunião com o Conselhão gaúcho no dia 14 deste mês.
Fonte: Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social
Foto: Caroline Biccochi