PELA ALTERAÇÃO DAS CONDIÇÔES DE EXISTÊNCIA DA POPULAÇÃO DE ASCENDÊNCIA AFRICANA NO ESTADO BRASILEIRO.
Sandrali de Campos Bueno
A sociedade brasileira se estruturou com base no colonialismo sob a égide da desapropriação dos pressupostos civilizatórios da matriz africana enquanto berço da humanidade e no ideário de supremacia cultural branca e patriarcal. Esses elementos dão sustentação à discriminação e à intolerância, promovendo desigualdades e violências estruturais e estruturantes, como vetores determinantes de um sistema excludente, impondo, sobretudo à população de ascendência africana, o lugar de invisibilidade social, econômica, política, histórica e cultural, além da desconstituição subjetiva de que o racismo perpassa por todas as relações, sejam estas interpessoais, sociais, religiosas, políticas e institucionais. Explicitando este lugar de invisibilidade no cenário brasileiro: a invisibilidade não é um atributo das pessoas de ascendência africana; elas ocupam o lugar da invisibilidade. O racismo se perpetua porque ele é uma opção política para legitimar a não existência de políticas efetivas que alterem a condição de existência das pessoas de ascendência africana e é a mesma opção que coloca os direitos como concessão ou como ações de governo, mas não como política de estado. São as condições que mantém a população de ascendência africana em posições sociais ‘menos favorecidas’ e com ‘menos direitos’ é que são invisibilizadas. É a situação da violência estrutural causada pelo racismo, pelo preconceito que a sociedade invisibiliza a partir da generalização e do senso comum da opinião pública construído por mecanismos instituídos e institucionais incrustados na formação colonialista da sociedade brasileira. A pessoa de ascendência africana, em si, é e pode ser vista, mas o lugar que lhe “reservam” que não pode ser questionado, nem o modo como “lhe olham”, nem as condições de existência, em que vivem, podem ser afirmadas e alteradas. É dessa invisibilidade que se quer falar e trazer à tona; dessa invisibilidade que o racismo institui e se estrutura: o que o racismo torna invisível são as ‘cadeias’, as finas amarras, o véu que esconde a perpetuação da pobreza, da baixa escolaridade, da sujeição à violência policial sob os mitos e arquétipos forjados na não-afirmação do Outro como Pessoa. Pois se assim não fosse, a universalidade dos direitos humanos não seria, como tem sido para a população de ascendência africana, um lugar diluído onde as políticas adquirem um ‘status’ de concessão, abstraída da existência do Ser e vinculada a não- afirmação desse Ser.
Neste sentido, cabe parafrasear a própria fala, enquanto alguém que ocupa o lugar de representatividade da Tradição de Matriz Africana, no Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social do Rio Grande do Sul, ampliando, para direitos humanos, o argumento que subsidiou o posicionamento, acerca das políticas de saúde, no que se refere à população de ascendência africana, ou seja: “a concepção de universo na cosmovisão africana agrega valores civilizatórios que se expressam na sociedade brasileira. Porem nem sempre são incluídos como saberes no processo de construção de direitos humanos. Entretanto quanto maior e mais apurado for o olhar dos gestores, mais aperfeiçoado será o recorte que farão nas políticas públicas. E é neste recorte que encontrarão o distanciamento na promoção e desenvolvimento das políticas para população negra, mas também será lá que encontrarão os instrumentos potencializadores para consolidação de políticas de promoção dos Direitos Humanos, no que diz respeito ao aperfeiçoamento da gestão solidária, participativa e transversal”, pois direito não pode ser concessão, direito é conquista.
O “reconhecimento de que o racismo, as desigualdades étnico-raciais e o racismo institucional são determinantes sociais” em que se inscrevem as condições de existência da maioria da população brasileira (lê-se população de ascendência africana, vide os dados do IBGE e FGV), significa um avanço conquistado através da luta dos movimentos sociais, conforme expõe a socióloga Reginete Bispo (2012),
"considerando, um largo histórico de luta pela cidadania e igualdade racial, desde a luta pela abolição da escravidão e, nas últimas décadas, destacando-se a ‘Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo pela Cidadania e a Vida’, realizada em 1995, como um novo marco frente a questão racial. A permanente organização e mobilização dos Povos de Terreiro, das Comunidades Remanescentes de Quilombos, das Organizações do Movimento Negro reivindicam uma Política de enfretamento às desigualdades raciais que levaram o governo brasileiro estabelecer mecanismos de Promoção da Igualdade Racial, destacando-se entre outros, a criação da SEPPIR – Secretaria Especial de Política de Promoção da Igualdade Racial, em 21 de março de 2003, com atribuição de “Promover a Igualdade e a proteção dos direitos de indivíduos e grupos raciais e étnicos afetados por discriminação e demais formas de intolerância, com ênfase na população negra”.
Mesmo quando se faz referência ao marco legal como: a Constituição Federal: art. 3º, IV; art. 4º, VIII; art. 5º, XLII; a Lei 12.288, de 20 de julho de 2010 que institui o Estatuto da Igualdade Racial; o Decreto nº. 6.872, de 04 de junho de 2009 – Institui o Plano Nacional de Promoção da Igualdade Racial – PLANAPIR; a Lei Estadual nº 11.731/02, que trata da regularização dos territórios quilombolas no Rio Grande do Sul; o Estatuto da Igualdade Racial do Estado do Rio Grande do Sul; o Decreto nº. 50.112, de 27 de fevereiro de 2013 que institui o Comitê Estadual do Povo de Terreiro com a finalidade de propor, sugerir, apontar e elaborar políticas públicas voltadas ao Povo de Terreiro e às Populações de Ascendência Africana, considerando os pressupostos de xenofilia de cosmovisão africana, ainda é preciso que se reconheça que o Estado Brasileiro tem uma dívida impagável para com o Povo Negro e seus valores culturais, principalmente no que refere à concepção do Sagrado e suas formas de se relacionar com esse Sagrado. Segundo afirma o teólogo Jayro Pereira de Jesus (2013),
“O racismo cultural que tem se manifestado mediante o que se convencionou chamar de intolerância religiosa que grassa no Brasil, tem redobrado suas violências com mais contundências em cidades cuja população vem se autodeclarando de Tradição de Matriz Africana e Afro-Umbandista, conforme as pesquisas oficiais (IBGE e FGV), como é o caso de Porto Alegre, sua região metropolitana e o Estado do Rio Grande do Sul como um todo. De acordo com os dados dos citados institutos de pesquisas e estatísticas os/as gaúchos/as sãos os/as adepto/as que mais se autodeclaram de Tradição de Matriz Africana e Afro-Umbandista do país reiteradamente. No caso da intolerância religiosa que acomete adeptos e locais dos cultos afros, seus alvos tem instado o Estado brasileiro a assumir como sua a responsabilidade pela resolução desse conflito unilateral que se arrasta histórica e secularmente no país ininterruptamente, mudando somente as características dos perpetradores que invariavelmente se inscreve no campo religioso que tem como sustentação da sua visão teológica de mundo o maniqueísmo e sob o qual projeta todo um embate em que forças opostas se confrontam”.
Voltando à questão do lugar da invisibilidade, é importante ressaltar que a religiosidade de matriz africana é visível quando vista como folclore – como cultura popular é permitida – mas quando se anuncia como visão de mundo, como concepção que permeia a existência, aí o racismo se expressa na sua forma mais violenta e cruel estabelecendo o ‘fascismo territorial’, na expressão de Boaventura Sousa Santos. E aqui cabe uma pausa conceitual para perguntas que se expressam na luta e na sabedoria da tradição de matriz africana, como nas falas de Iyá Vera Soares e de Baba Diba de Yemonjá: Em que mês deste ano não tivemos um ataque a casas de religião da tradição de matriz africana? Quais as razões para invisibilizar a motivação do assassinato de Vilma Santos de Oliveira, a Iyá Mukumby, 63 anos, iyalorixá, líder do movimento negro, sua neta e sua mãe, assassinadas violentamente na noite do dia 03de agosto, deste ano, no Jardim Champagna, em Londrina, no Paraná?
E daí não é difícil entender o que está implícito no texto que introduz os documentos da III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata promovida pela ONU em 2001, na cidade de Durbam, / África do Sul, ao referir que: “embora as negociações destes dois documentos tenham sido muito intensas e por vezes difíceis, a sua adoção, por consenso, representou um marco histórico significativo na luta contra o racismo e a discriminação. Asquestões mais controversas se prenderam com a abordagem de fenômenos históricos como a escravatura, o tráfico de escravos e o colonialismo” (grifo é nosso).
E aqui é um bom lugar para reafirmar que as pessoas de ascendência africana não são descendentes de escravos, citando Makota Valdina, “somos descendentes de seres humanos que foram escravizados”.
O Estado Brasileiro, mesmo sendo signatário de tratados e acordos internacionais no combate ao racismo, à xenofobia e à intolerância, não tem dado conta do que estes mecanismos irradiam e da capacidade do povo brasileiro de se reconstruir a partir da pluralidade dos povos que constituíram nosso país. Neste cenário, destacamos o entendimento da ONU de que o Ano de 2011, como o Ano Internacional das Pessoas com Ascendência Africana não foi o suficiente para promover avanços contundentes e, instituiu o período de 2013 a 2023 como a Década para as Pessoas com Ascendência Africana, tendo como proposta de que ações sejam efetivamente engendradas para que os/as afrodescendentes adquiram a cidadania plena. O imperativo é o estabelecimento de organismos estruturais e de formulação de políticas estruturantes nos âmbitos dos governos nacionais, estaduais e municipais voltados para as relações étnico-raciais.
Isto exposto e tendo como indicador teórico conceitual os princípios civilizatórios da cosmovisão africana, destacamos a “Década para as Pessoas com Ascendência Africana como uma perspectiva de restabelecimento do patrimônio axiológico negro-africano como forma de saldar a dívida secular e histórica, devolvendo os valores existenciais que se inscrevem na visão de mundo do berço da humanidade, ou seja, anterior ao processo colonialista e incidindo nos processos de colonialidade, vigentes nas políticas que se pretendem universais, mas que ainda mantém inalteradas as condições de existência da população negra”. (Jayro Pereira de Jesus, 2013).
Neste contexto, é preciso reafirmar que Direitos Humanos se subscrevem como princípio civilizatório que transcende as subjetividades, enquanto “ser consigo mesmo” para “ser com os outros”. Essa dimensão humana, em que a pessoa está conectada a tudo e a todos, é que confere o caráter de universalidade do acesso pleno ao patrimônio imaterial, histórico, cultural, social e econômico da humanidade, para todas e todos, sem qualquer distinção.
E que “sirvam nossas façanhas de modelo”, mas que tenhamos coragem para transformar o ideário que cunhou o verso racista.
Porto Alegre, 23 de agosto de 2013.